Inadiável: Uma história que vivi de conexão de almas
- Dra. Marcelly | Nolar
- 4 de nov. de 2022
- 6 min de leitura
Eu tive um encontro com o sagrado, de uma forma única e inesquecível!
Como todos os dias, hoje foi mais um deles onde eu lutei para não deixar que ele terminasse sem que eu pudesse tocar nas suas longas linhas pares com as minhas próprias mãos.

Parte 1: O dia da minha aula
Tudo começou na sexta-feira passada quando me preparava para falar sobre odontologia na pós em cuidados paliativos que me formou em 2018, e com a minha querida professora Ana Claudia que tanto me inspira. Pense se eu não estava com as pernas tremendo, era como se eu fosse encontrar um paquera. Não almocei, não dormi direito, e me permitir viver agoniada o dia todo. Coisas que a gente espera viver, adrenalina pura na veia.
Meia hora antes da aula começar, a portaria me ligou... eles não fazem isso por aqui, pensei. Quando tem alguma entrega, eles guardam e quando descemos e perguntamos, eles nos entregam.
Mas nesse dia, nem mesmo a portaria do prédio se rendeu aos caprichos do sútil e do inesperado. Me ligaram, e falaram que tinha uma encomenda para retirar, aproveitei para tentar dar uma relaxada e respirar, desci e me encontrei com um abraço que não me soltou até agora: era um envelope cheio de miudezas e que me olhava nos olhos e dizia: "O enigma do firmamento a sua espera, toda vez que você abre a janela."
Li, e naquele mesmo instante senti minha alma inundada, transbordando de fortaleza e certeza de que meu caminho era aquele, de que eu estava exatamente no lugar onde eu deveria estar.
Abracei o meu jornal das miudezas, e trouxe ele comigo no peito como um talismã, e essa segurança de querer abrir a janela para descobrir o que me esperava no firmamento, me fez abrir a janela da minha alma.
Foi lindo, um encontro maravilhoso, minha essência tomou conta da minha dor de barriga, entrei na delicadeza do partilhar e do servir.
Encontrei na caixinha do correio, com três peixinhos mergulhando nas palavras das profundezas do oceano um envelope que me puxou pela mão e disse: "vai lá, você da conta, você consegue, confia!"
Dali pra cá, comecei a sentir e ter clareza de que o mundo não poderia mais ser usado só para o habitual, mas sim para o extraordinário que há em cada um de nós.
Acompanhei a aula do querido André Gravatá, antes da minha, mas eu ainda estava com os pensamentos acelerados, respirando rápido e curto, pensando em como ser eu naquela hora seguinte, e fazer as pessoas quererem ouvir o que eu tinha para falar.
Então, se despedindo, o André começa a recitar uma poesia divina, eu incontrolavelmente fui levada ao momento presente, comecei a libertar meu cérebro dos pensamentos mais insanos que passavam pela minha cabeça.
Me comportei bem e fiquei como um prego bem pregado na parede ...
Aproveitei cada minutinho daquela aula, e segui forte e corajosa para ser exatamente quem eu desejava ser!
Foi lindo, inesquecível 🦋
Parte 2: A poesia
Passei dias procurando pela poesia que o André tinha recitado na aula, até que ela me encontrou ... Foi gentilmente enviada, tanto escrita como vivida ....
As vezes a poesia nos acha em casa! Mesmo que seja de repouso... em uma instituição de longa permanência. Assim como a poesia, a morte também da um jeito de nos encontrar.
Como um passarinho livre, partiu o nosso querido A.C.A.C, rumo a sua liberdade, de certo foi se casar, como ele havia planejado para o final deste ano, nem mesmo os seus 90 e tantos anos, eram motivo para um não, mas como por aqui, na velhice, quase nada é permitido, não era possível realizar esse feito, pois então, ele partiu, e foi se casar com a sua namorada com quem tanto falava por telefone nesse período de solidão, lá do outro lado do rio.
Porque lá tudo pode, tudo é livre, lá, os homens que quiseram viver de verdade aqui desse lado, são convidados de honra.
E com certeza o senhor A.C.A.C foi recebido assim! Posso provar em forma de poesia!
Quem passou pela vida em branca nuvem E em plácido repouso adormeceu; Quem não sentiu o frio da desgraça, Quem passou pela vida e não sofreu, Foi espectro de homem - não foi homem, Só passou pela vida - não viveu. Francisco Otaviano Ilusões da vida.
Foi assim que conheci de verdade o senhor A.C.A.C através dessa poesia que que ele humildemente me presenteou em uma das nossas consultas odontológicas, e carrego comigo como um amuleto sagrado.
Parte 3: A conexão de almas
Um dia inteiro tentando me desvencilhar do habitual, da loucura da rotina que empurra o sútil para longe, fui chamada pela morte e pela vida, para encontrar o sútil que estava escondido embaixo da cama.
- Marcelly, tem uma paciente nova para avaliar.
Olhei relatório, esquizofrenia....
Pelos corredores procuro o quarto da paciente, apenas com o seu primeiro nome em um papel, e sua doença de base na memória do relatório, e sou conduzida por uma brisa suave que passeava pela janela aberta, arejando o quarto, levando o cheiro das roupas guardadas para sempre.
A porta aberta, uma mulher sentada na cama, comendo uma caixa chocolate.
Magra, muito magra, e comia aquele chocolate como se estivesse realizando a ação mais preciosa do dia.
Com licença, posso entrar, eu disse.
Ela levantou a cabeça, abriu mais um chocolate, e me olhando, mastigou inúmeras vezes até que ele derretesse na sua boca, e satisfizesse sua alma através das suas papilas gustativas como uma explosão de sabores. E lá estava eu, presenciando aquele momento sublime !
Pensei: como eu posso estar imaginando o que está acontecendo dentro da boca dela? Será que estou demenciando ?
Mas já era a poesia entrando pelas minhas vias aéreas e dominando meu cérebro!
A paciente levantou e foi escovar os dentes para que eu a avaliasse. Isso durou cerca de 3 minutos, mas no meu cérebro de mundo paralelo, durou umas 3 horas.
E nesses 3 minutos, olhei ao redor, e senti que aquele quarto me parecia familiar!
Nada mais era como eu tinha visto antes, o cenário tinha mudado, e a personagem também, poucas roupas, bagunçadas, e quase nenhum objeto que representasse uma história, uma biografia, tudo muito vazio, talvez essa tenha sido a vida dessa paciente, vazia, sem memórias e sem compasso.
Mas, olhando bem... o guarda-roupa guardava um pouquinho do cheiro das roupas guardadas para sempre.
Indaguei tudo, estranhei a atmosfera, fugi das armadilhas das tarefas diárias, até esqueci da avaliação bucal. Afinal o que eu estava fazendo ali, se não era procurando a poesia?
E comecei a ver tudo que estava escondido no tempo (pouco tempo).
A coleção de bonés, as várias fitas de vídeo e DVDs de filmes antigos que ficavam sobre a bancada, a agendinha de telefones com o telefone daquele amor que serviu de esperança durante esse ano todo, uma televisão, filmes e mais filmes!
E um terço de reza de parede lindo, marrom escuro, com aquelas bolas enormes, é uma cruz prata brilhante, que protegia toda aquela poesia....
Enquanto isso, ela continuava debruçada sobre a pia do banheiro.
Era como se ela escovasse os dentes por tantos instantes, necessários para que eu entendesse o invisível, eu quase conseguindo pegar o peixe com a mão, vejo uma poesia sobre a mesa....
F R A N C I S O T A V I A N O
Ahhhh? O que ???? Como assim !!!
E então, a paciente sai do banheiro, senta na cama, e com aquele olhar fixo, aquela música clássica tocando no rádio velho, abriu a boca e falou: pode avaliar!
O portal do sútil começou a se fechar, mas eu não podia deixar aquilo acontecer, era inadiável!!!! Fui bem perto da paciente, olhei bem os olhos dela, percebi uma semelhança naqueles dentes grandes e tortos, mais uma vez não dei chance para o habitual.
E perguntei:
Por que a senhora está aqui? Veio para tratamento? O que a trouxe aqui? Mais precisamente na minha mente... por que esse quarto?
Ela disse rapidamente: - Bom, eu estou muito magra, e as pessoas acham que estou doente, mas eu sempre fui assim, não estou doente, porém depois do que aconteceu com o papai, acharam melhor eu vir para cá!
O peixe estava quase na minha mão, era um olho no peixe e o outro na poesia do Otaviano em cima do móvel.
Perguntei: Então, o que aconteceu com o seu pai ?
Ela me disse: Você não soube?
Ali o tempo parou! Peguei o peixe, e ela viu que eu tinha pego, mas como estamos acostumados a viver como pregos mal pregados na parede, eu precisa ouvir, não pude acreditar que durante aqueles 3 minutos tudo aquilo pudesse ser verdade.
Ela me olhou e perguntou novamente:
Você não soube ?
Eu disse: não ....
Ela: ele morreu! Morreu aqui, semana passada ....
Eu: você é filha do senhor A.C.A.C ????
Ela: sou!
Nesse momento vivi intensamente a conexão de almas, vi um pai e uma filha no mesmo quarto, um visível e o outro invisível, mas que era tão vivo... um com tantas histórias e o outro apenas com os chocolates.
Apareceram Nuvens como nunca, uma chuva como nunca, caíram gotas diferentes.
A Terra girou em torno de seu eixo, mas num espaço já abandonado para sempre.
Isso durou umas boas 24 horas.
1440 minutos de chances.
86 400 segundos para intuições.
Peguei novamente a caixa de chocolate, coloquei nas mãos da paciente, pedi desculpas por atrapalhar um instante tão prazeroso, onde ela saboreava talvez a única possibilidade de aconchego e refugio enquanto era embalada e acariciada pelo seu querido pai, já invisível mas vivo em cada letra daquela poesia ...
ilusões da vida 🦋
Obrigada!
Ana Claudia Quintana Arantes
André Gravatá
Wislawa Szymborska
Francisco Otaviano
A.C.A.C
Filha do A.C.A.C
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